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Estudo aponta aumento das taxas de suicídio no Brasil após a criação da campanha “Setembro Amarelo”

Estudo aponta aumento das taxas de suicídio no Brasil após a criação da campanha “Setembro Amarelo” 1642 1114 INPD Cism

A investigação científica, feita por especialistas da área, indica que é possível que a campanha não seja eficaz como se imaginava, e recomenda necessidade de concentração em estratégias positivas de sobrevivência

Um artigo científico acaba de ser publicado na revista médica Journal of Affective Disorders revelando que houve aumento das taxas de suicídio no Brasil depois da implantação da campanha “Setembro Amarelo”. O estudo é assinado por 11 pesquisadores brasileiros, sendo seis ligados ao Centro de Pesquisa e Inovação em Saúde Mental (CISM). 

Intitulado Associations between a Brazilian suicide awareness campaign and suicide trends from 2000 to 2019: Joinpoint and regression discontinuity analysis (“Associações entre uma campanha brasileira de conscientização sobre suicídio e tendências de suicídio de 2000 a 2019: Análise de ponto de junção e descontinuidade de regressão”, em tradução para o português), o artigo foi divulgado pelo periódico no dia 24 de agosto – veja aqui

O estudo analisou dados de suicídio de 2000 a 2019, disponíveis no Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS), para avaliar tendências antes e depois da campanha nacional, que foi desenvolvida em 2014 e passou a ser realizada a partir do ano seguinte. Desde então, é possível notar uma aceleração dos casos no Brasil.  

Utilizando uma combinação de duas técnicas estatísticas para a análise dos dados, os pesquisadores detectaram uma mudança na inclinação da curva de suicídios, com uma aceleração a partir de 2015. A análise mostrou que o coeficiente da associação entre o “tempo” (anos) e as “taxas” subiu de 0,07 para 0,27 suicídios/ano por 100 mil habitantes.

Além disso, houve também um aumento geral de 57%, entre 2000 e 2019, na taxa de suicídios por 100.000 habitantes – diferente da tendência global, que é de queda.  

Para o pesquisador e médico psiquiatra Rodolfo Furlan Damiano, autor principal do artigo científico, o estudo revela um preocupante aumento nas taxas de suicídio no Brasil, indicando limitações da campanha para alcançar a redução efetiva desses números.

“Após a implementação da campanha ‘Setembro Amarelo’, os suicídios tenderam a se concentrar mais nos meses seguintes a setembro, demonstrando uma interação significativa entre o período e a campanha”, aponta Damiano, que, além de pesquisador do CISM, é coordenador do Ambulatório de Depressão Resistente ao Tratamento, Autolesão e Suicidalidade do Instituto de Psiquiatria (IPq) da Universidade de São Paulo (USP).  

Para o psiquiatra, a principal recomendação deixada pelo estudo é a necessidade de uma abordagem multifacetada nas campanhas de sensibilização, com modificações concretas nos cuidados de saúde. “Enfatizamos a necessidade de as campanhas se concentrarem em estratégias positivas de sobrevivência e na desestigmatização, ao mesmo tempo em que destaquem a importância de serviços de apoio acessíveis à população”. 

O psiquiatra Rodolfo Furlan Damiano é o autor principal do artigo científico

Benefícios x riscos da campanha

O suicídio é um problema de saúde global que vem aumentando em países de baixa e média renda. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), por ano, ocorrem cerca de 703 mil mortes por suicídio, sendo a maioria deles (77%) nessas nações. 

No Brasil, além do aumento das mortes por suicídio, houve, nos últimos anos, um crescimento acentuado de notificações de automutilação e hospitalizações. 

Damiano explica que, por abordar um problema crítico de saúde pública, é essencial que quaisquer mudanças na taxa de suicídio, ao longo do tempo, sejam avaliadas a fim de fornecer pistas sobre potenciais benefícios ou riscos associados à campanha. Segundo ele, há uma série de outras campanhas de sensibilização para a prevenção do suicídio em todo o mundo, porém, apesar da implementação, os resultados ainda são desconhecidos.

“Compreender a eficácia desta e de outras campanhas de sensibilização é crucial para implementar políticas públicas, especialmente em países de baixa e média renda, onde o orçamento tende a ser limitado”, destaca o pesquisador, especialista no tema. 

As ações da campanha “Setembro Amarelo” consistem em comunicados nas redes sociais, cartilhas informativas, materiais gráficos para a imprensa, além de conteúdos de conscientização pública e educativos sobre suicídio e saúde mental. 

O pesquisador chama atenção para o aumento nas tendências suicidas no Brasil, coincidindo com o início da “Setembro Amarelo”, na contramão da tendência global. “Embora não possamos atribuir causalidade, os nossos resultados reforçam a necessidade de mais estudos para compreender melhor o papel das campanhas de sensibilização nas intervenções de redução do suicídio, incluindo potenciais efeitos não intencionais”, alerta. 

A pesquisa

Recentemente, outros dois estudos científicos investigaram mudanças na taxa de suicídio no Brasil, explorando possíveis associações com o início da “Setembro Amarelo”. Ambos, entretanto, são limitados em aspectos importantes: um deles porque investigou apenas um estado do Nordeste, e o outro porque realizou análises que não têm a capacidade de discernir padrões não-lineares ou abordar flutuações ao longo do tempo. 

Já a pesquisa conduzida pelo médico psiquiatra Rodolfo Damiano combinou duas técnicas estatísticas para a avaliação dos dados. “Para uma análise das tendências de suicídio, essa combinação oferece uma compreensão mais abrangente dos fatores que influenciam as mudanças nas taxas ao longo do tempo”, explica o pesquisador.  

Chamada de Joinpoint (ponto de junção), a primeira técnica identifica pontos onde uma tendência muda significativamente, e a segunda, Regression Discontinuity Design – RDD (descontinuidade de regressão), avalia o impacto de uma intervenção ou evento com base em um limite ou ponto de corte, frequentemente usada para investigar o impacto de certas políticas públicas, intervenções ou tratamentos em taxas ou resultados relacionados. 

“Isso nos dá a oportunidade de testar diretamente a hipótese de que um ponto específico no tempo esteve associado a uma mudança na inclinação da tendência linear”, detalha Damiano. “Ao utilizar ambas as técnicas, podemos desvendar a tendência geral de mudanças que ocorrem após a introdução de políticas específicas, levando a uma avaliação mais matizada e precisa dos fatores que impulsionam as tendências de suicídio”, conclui.  

Apesar da robustez das análises empregadas, não é possível estabelecer causa e efeito entre a campanha e o aumento dos casos de suicídio, mas, segundo o pesquisador, evidencia, no mínimo, que a implementação da política não foi eficaz em reduzir a tendência de aumento desse índice no país.

23 de setembro de 2024 

Institucional CISM