O sol já encerrava expediente quando foi anunciada a nota dos candidatos. Após cumprir as etapas da prova didática no período da manhã, Elizabeth Shephard sentiu as horas seguintes passarem como alguém que espera na plataforma da estação a chegada do mensageiro no próximo trem a vapor. Nesse caso, a avaliação que definiria o resultado do concurso para o cargo de professora doutora no Instituto de Psicologia da USP.
O choro aliviado de quem havia percorrido léguas para alcançar esse ponto se misturava com os abraços e cumprimentos da platéia. “Foi um dia inesquecível. Meu marido, sogros, mentor, vários membros da minha equipe estavam lá me apoiando. Estou grávida, e por isso foi mais cansativo e emocionante, e ainda mais especial”, declara a recém-aprovada.
Natural da Escócia, a então pós-doutoranda no King’s College London atravessou o atlântico em 2018 para acompanhar o namorado brasileiro. Mas não sem antes entrar em contato com os professores Euripedes Miguel e Guilherme Polanczyk, demonstrando genuíno interesse nas investigações científicas conduzidas por eles no departamento de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. A receptividade de ambos motivou a neurocientista do desenvolvimento a submeter uma proposta à FAPESP, para financiamento de pesquisadora visitante no departamento, que foi concedida.
Estudos e parcerias
Lizzie, como é conhecida entre todos, manifesta grande estima pela universidade e pelo Brasil ao narrar sua caminhada dos últimos anos bem como a descrição da rota. As boas lembranças se sobrepõem às dificuldades impostas por causa do idioma e adaptação cultural na ocasião da chegada. Dentro do programa de pesquisa do professor Polanczyk, além de ter participado do desenvolvimento de ideias colaborativas para projetos de neurodesenvolvimento, ela liderou a coleta e análise de dados cerebrais de bebês vulneráveis e de crianças pré-escolares com TDAH, resultando na publicação de uma série de papers.
Simultaneamente, iniciou uma colaboração com o professor Jonathan Green na University of Manchester, no Reino Unido, para colocar em prática no país uma intervenção desenvolvida por ele para crianças autistas – a Paediatric Autism Communication Therapy (PACT). Junto da sua aluna de doutorado, Priscilla Godoy, realizou um estudo de implementação dessa terapia no contexto brasileiro e estabeleceu o primeiro centro de treinamento da PACT em território nacional.
No Programa Transtornos do Espectro Obsessivo-Compulsivo (PROTOC), liderado por Euripedes Miguel, também seu mentor, Lizzie colaborou em artigos sobre neurocircuitos envolvidos no transtorno obsessivo-compulsivo. Dessa vivência, destaca a liderança diferenciada e inspiradora do professor, tão refletida na dinâmica de trabalho da equipe: “O grupo é bastante carinhoso e respeitoso, e está sempre comemorando as conquistas de cada membro”, ela conta.
Programa Jovem Pesquisador
Em virtude das experiências positivas, a cientista visitante decidiu concorrer à uma bolsa por meio do Programa Jovem Pesquisador FAPESP 2021, para prolongar sua permanência no país. O financiamento propiciou estabelecer o próprio grupo de trabalho focado em Neurociência, Neurodesenvolvimento e Neurodiversidade, cujo principal projeto é o Floreah.
A proposta do Floreah consiste em acompanhar o neurodesenvolvimento de 300 bebês brasileiros: sendo 100 deles com histórico familiar do autismo, 100 com histórico familiar do Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), e outros 100 sem histórico familiar de autismo e TDAH. Trata-se de um estudo prospectivo longitudinal inédito na América Latina para investigar as trajetórias neurodesenvolvimentais iniciais envolvidas no autismo e no TDAH, no qual inclui um ensaio clínico randomizado visando avaliar a eficácia de uma intervenção preemptiva para os bebês com histórico familiar de autismo e TDAH. O projeto – em parceria com Green – deve continuar até 2026, e Lizzie espera conseguir mais financiamento para expandir a intervenção em escala nacional.
A respeito da equipe, ela fala com orgulho da formação que aconteceu de maneira progressiva reunindo discentes e profissionais gabaritados da saúde mental. Em conjunto, criaram um ambiente de trabalho harmonioso e, ao mesmo tempo, rigoroso em termos de pesquisa. Por essa razão, a neurocientista optou por permanecer no país e buscar uma posição permanente tão logo surgiu a perspectiva do concurso no Instituto de Psicologia.
Diferenças e semelhanças
No Brasil, a pesquisadora identificou um maior número de investigações aplicadas a resolver problemas de saúde no mundo real, e como prioridade no ensino a aplicação da psicologia clínica. Em oposição ao Reino Unido, onde as explorações se concentram na “ciência básica” e na formação sobressaem os métodos experimentais e estatísticos. Outro ponto divergente está no fato de lá fora ser exigido doutorado para a prática da clínica.
Referente ao fomento da pesquisa e do ensino há menos apoio e regulamento por aqui. Já em termos de similaridades, os dois países se empenham em produzir conhecimento de alta qualidade e prover uma educação sólida para os alunos de graduação e pós-graduação.
À parte da esfera científica, a escocesa revela adorar as praias e florestas brasileiras, o clima tropical e, claro, a diversificada gastronomia de São Paulo. Do hemisfério norte, sente falta das excelentes companhias de balé que Inglaterra e Escócia possuem. Pois, antes de se tornar neurocientista, a xará da ex-rainha rodopiava o tutu nas pontas dos pés.
Próximo expediente
Na cadeira ocupada recentemente, a docente vai explorar a perinatalidade e o neurodesenvolvimento, em colaboração com os colegas Leopoldo Fulgencio e Rogerio Lerner. Em sala de aula, deverá ministrar disciplinas associadas ao tema de neurociência cognitiva do desenvolvimento e intervenções que visem aprimorar as relações cuidador-criança, tanto para a graduação em psicologia como para a pós-graduação em psicologia do desenvolvimento.
Animada para começar a nova fase da carreira, Lizzie faz questão de ressaltar os parceiros de caminhada. “Estou feliz e realizada com a aprovação. Sou muito grata por todas as oportunidades que recebi no Brasil, em especial o apoio dos professores Euripedes Miguel e Guilherme Polanczyk e da FAPESP. Agradeço também à minha equipe pela confiança e pela concretização desse trabalho lindo”, sublinha.
O despertar na manhã seguinte ao concurso foi de paz e tranqüilidade para Elizabeth Shephard. As dificuldades, preocupações, estresse vividos nos últimos anos de atuação como pesquisadora sem contrato permanente não existiam mais. Na casa de vila onde mora com o marido, rodeada de plantas e flores e na presença de duas gatas que transitam livremente pelo jardim, ela já sonha o futuro bebê falando português e inglês na terra da garoa.
Institucional CISM.